JUSTIÇA (?)
- Dr. Vinícius Bueno (OAB/SC 40.836)
- 23 de set. de 2018
- 5 min de leitura
Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio... nomes que, para a maioria de nós, trazem uma sensação avessa ao conceito (interior) que temos de justiça - palavra, inclusive, difícil de se conceituar.
Suum Cuique Tribuere, isto é, "dar a cada um o que lhe é devido", é o que entendo seja o mais símil conceito de justiça.
Mas o que é devido a cada um?
A vida em sociedade traz, inevitavelmente, a necessidade de normas, as quais estabelecem limites às condutas dos seres humanos. E toda norma, em regra, provém de um princípio.
Por exemplo, o direito à vida é um princípio. Dele decorre uma norma: não matar. Do princípio da dignidade da pessoa humana decorrem normas como não injuriar, não caluniar, não difamar. Do princípio da igualdade decorrem normas como o não racismo. Do princípio da boa-fédecorre, em certa medida, as normas referentes ao ônus da prova ("a boa-fé se presume, a má-fé se comprova"), e por aí vai.
Do ponto de vista filosófico, podemos dizer que os princípios provém da própria natureza humana: todo ser humano almeja ser respeitado, viver em paz, não ser furtado, roubado, violentado, ludibriado, etc. As normas, portanto, são meios pelos quais se limita a conduta humana; elas impõe a todo aquele que vive em sociedade um padrão mínimo de condutas para a garantia da boa convivência e manutenção da ordem e da paz.
Mas a norma em si não terá qualquer efeito se não houver, por trás dela, uma sanção, ou seja, uma penalização ou consequência pelo seu descumprimento. E é aí que entra o papel do Estado que, dentre as três principais teorias acerca de sua criação/existência, eu pessoalmente sou adepto daquela que afirma que o Estado sempre existiu (Eduard Meyer), apenas que de diferentes formas e complexidade.
Temos então o seguinte panorama:
1. as pessoas querem viver em paz;
2. para tanto, é necessário que hajam limites para a conduta humana;
3. esses limites são impostos por meio de normas;
4. o não cumprimento de uma norma enseja uma penalidade;
5. a penalidade - que também existe em forma de norma/lei - é aplicada pelo Estado;
O Estado, através do Poder Judiciário, aplica a sanção quando há descumprimento de normas. Especial atenção para o termo "APLICA". Em outras palavras, o dever do Judiciário é, analisando os fatos, aplicar a norma respectiva.
Essa aplicação se dá por meio de um processo. E esse processo, por conseguinte, se desenvolve dentro de um padrão previamente estabelecido, ou seja, o processo tem regras. Grosso modo, são as regras do jogo (Processo Civil/Penal), as diretrizes e o modo como o processo deve se desenrolar.
Dentre as principais regras/princípios do processo estão:
i) o princípio da legalidade ("tudo que não é proibido é permitido", à exceção do direito administrativo, em que a regra é o oposto);
ii) a distribuição do ônus da prova;
iii) o princípio do livre convencimento motivado do juiz (que, na minha ótica, e conforme grande parte da doutrina, não foi extinto com o advento do Novo Código de Processo Civil).
Para observarmos o nexo entre aqueles três elementos, e a relação entre eles e o conceito de justiça, usemos um exemplo:
Acidente de trânsito. Um veículo bate na traseira do outro, mas porque este, que estava parado na pista da esquerda, arrancou e entrou abruptamente na pista da direita, e o veículo que vinha transitando normal, pego de surpresa, acerta a traseira do outro.
De quem é a culpa pelo acidente? O que seria um julgamento justo nesse caso? Vamos à norma.
A lei (Código de Trânsito) não diz que "aquele que bate na traseira é culpado". A lei diz apenas que todo veículo deve manter distância segura em relação ao veículo da frente (inc. II do art. 29, do CTB).
Então temos o primeiro elemento, (i) o princípio da legalidade. Neste aspecto, o juiz vai PRESUMIR que a culpa é de quem bateu na traseira (porque a norma não trata de culpa, mas de dever de cuidado).
O segundo elemento seria (ii) o ônus da prova, e aí caberia àquele que bateu na traseira comprovar que não o fez por falta de cuidado, mas por imprudência daquele que trocou de faixa abruptamente e invadiu a pista da direita.
Vamos supor que, logo pós o acidente, os envolvidos trocaram telefone, se acertaram e, aquele que invadiu a pista da direita, assumindo a culpa, comprometeu-se a pagar pelo conserto do carro do outro. Contudo, como não é incomum, posteriormente ele mudou de ideia e se recusou a pagar. Restou ao outro mover uma ação judicial.
Contudo, como na hora do acidente as partes entraram em acordo (e aí vemos que a "vítima", ainda que subconscientemente, seguiu o princípio da boa-fé, portanto confiou no outro), a "vítima" não se preocupou em pedir a alguém na rua, ou em outro carro - pessoas que presenciaram o acidente -, que fossem testemunhas em caso de necessária demanda judicial, não tirou fotos do local e dos veículos, bem como deixou de ligar para a polícia ou autoridade de trânsito. Suponhamos ainda que, naquela rua, não havia câmeras que pudessem gravar o ocorrido.
Então a "vítima", movendo a ação, narraria os fatos tais como ocorridos. O culpado, em sua defesa, alegou que estava na pista e foi abalroado na traseira por descuido do outro. A "vítima" não tem provas. Além disso, moveu a ação no juizado especial (pequenas causas), onde não é possível pedir perícia (e mesmo que fosse possível - perícia simples, imagine-se que um deles já houvesse consertado seu carro e, não havendo fotos, ficasse inviável a verificação das peculiaridades do caso pelo perito).
O juiz, através do elemento (iii), o livre convencimento motivado, e ante a falta de outras provas, aplica o direito e decide: "o CTB determina que se mantenha distância segura do veículo à frente, e a jurisprudência é pacífica no sentido de que a presunção de culpa é de quem bate na traseira do outro (i). O autor da ação não fez prova de que o réu teria invadido a pista da direita e lhe cortado a frente de forma abrupta, ônus que lhe incumbia. Portanto, junto improcedente o pedido de reparação por danos materiais (iii)".
Exemplo 2: paguei o IPTU da minha casa mas perdi o comprovante. Por algum erro de sistema a Fazenda não acusou o pagamento e, depois de inscrever o suposto débito em dívida ativa, cobrou-me mediante execução Fiscal. Como não tenho como comprovar que paguei, acabarei tendo que pagar de novo.
Pergunta: nestes casos foi feito JUSTIÇA?
No mundo dos fatos, não, mas no mundo jurídico sim.
Portanto, considerando que vivemos num sistema normativo (e não teria como ser diferente, sob pena de insegurança total), precisamos entender que JUSTIÇA (dentro de um processo, ou seja, na visão do Poder Judiciário - seja processo cível, criminal, tributário) é a resolução do conflito. O conflito, dentro dos parâmetros legais, foi resolvido; se, no mundo dos fatos, isso foi justo ou não, é um problema que o Judiciário não consegue resolver.
Assim, antes de sair falando que o julgamento do STF, do TSE ou de qualquer outro órgão jurisdicional foi injusto, você precisa analisar a íntegra do processo. Sem isso, seu protesto vai ser apenas uma opinião vazia.
Ademais, tenha sempre um advogado competente e de confiança para lhe instruir adequadamente antes de fazer ou deixar de fazer qualquer coisa. Isso pode te "salvar".

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